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#3: mais telas, menos palavras.
O que a ciência diz sobre o impacto das telas nas habilidades de linguagem na infância
Era uma vez um bebê que aprendeu a dar play antes de aprender a falar “mamãe”…
Pois é, parece exagero… mas a ciência acaba de mostrar que não é bem assim. Se você ainda acha que “é só um desenho” ou que “criança aprende tudo com a Galinha Pintadinha”, essa edição vai te dar alguns dados pra rever esse roteiro.
🧠 Como você vai ficar mais inteligente hoje
Tema: Uso de telas e habilidades de linguagem na infância: o que os dados realmente mostram
Fonte: Associations Between Screen Use and Child Language Skills: A Systematic Review and Meta-analysis. JAMA Pediatrics, 2020 - Link para o artigo completo clicando aqui
Por que você deveria se importar?
Você acha que sabe, mas…
A diferença entre quantidade e qualidade de tela (spoiler: faz TODA a diferença!)
O que a ciência já sabe sobre o efeito da TV de fundo
Co-viewing: modinha ou estratégia real de proteção??
Por que ser chata(o) com telas?
O que o estudo mostrou, de fato…
E na prática, o que eu faço com isso?
Em 1 minuto: o que você precisa lembrar
✋ Por que você deveria se importar?
Porque é impossível atender uma família hoje e não falar de TELAS.
Você pode até não gostar do assunto, mas a criança de dois anos que chega no consultório com atraso de fala e um histórico de 4 horas diárias de Galinha Pintadinha no YouTube precisa que você se importe…
E como a gente ama uma discussão baseada em evidência, hoje vamos falar do estudo publicado no JAMA Pediatrics, uma revisão sistemática com meta-análise de 42 estudos envolvendo quase 19 mil crianças.
O objetivo? Analisar como diferentes formas de exposição às telas (duração, conteúdo, “co-visualização” e idade de início) se associam com habilidades de linguagem, tanto receptiva quanto expressiva.
Spoiler: a conclusão bate forte (e é algo que já discutimos há algum tempinho.. rs).. Quanto mais tempo de tela, menos desenvolvimento de linguagem. Mas há nuances, e é isso que vamos explorar aqui.
🤯 Você acha que sabe, mas…
A maioria dos profissionais ainda pensa no uso de telas como um problema binário: “usar é ruim”, “proibir é bom”. Mas a verdade é mais complexa (e muito mais útil pra quem atende crianças todos os dias)
O estudo organizou a exposição às telas em três pilares:
Quantidade (tempo total de tela e TV de fundo)
Qualidade (tipo de conteúdo e se há co-viewing*)
Idade de início (quanto mais precoce, pior)
O efeito mais claro foi da quantidade: o maior tempo de tela está associado a piores habilidades linguísticas (r = –0,14). E atenção: isso vale inclusive para televisão ligada ao fundo, mesmo que a criança não esteja assistindo ativamente (r = –0,19).
Porém, algo “novo” que esse estudou viu é que conteúdos educativos, principalmente quando consumidos junto com um adulto (co-viewing*) aparecem como fatores protetores.. leves, mas reais!
📺 Por que ser chata(o) com telas?
Vamos combinar aqui entre nós: a consulta de puericultura é uma maratona... e tentar incluir “orientações sobre uso de telas” parece missão impossível entre vacinas, curvas de crescimento, sono, alimentação, marcas de pomada e fralda… eu sei bem.
Mas vale o esforço, sabe por que? Porque a linguagem é um dos primeiros marcadores de risco do desenvolvimento, e não só isso, é frequentemente impactada pelo uso excessivo de telas.
Só que existem tipos diferentes de exposição às telas e cada uma, segundo o artigo, tem uma associação..

“Legal.. entendi a teoria.. mas como eu justifico mudanças de conduta/orientações através desse estudo?”
Se você tá pensando isso, saiba que eu to muito orgulhosa.. afinal, é assim que a gente cria juízo crítico, e isso é fundamental na nossa profissão.
Mas calma, gafanhoto(a)! É o que vamos falar agora rs
🧪 O que o estudo mostrou, de fato
Se você é do tipo que quer números antes de mudar a conduta (a gente respeita isso, sério isso), aqui vai o resumo estatístico da meta-análise:
Fator Analisado | Correlação (r) | Interpretação Clínica |
---|---|---|
Tempo total de tela | -0.14 | Reduz linguagem expressiva/receptiva |
TV de fundo | -0.19 | Prejudica mais ainda |
Conteúdo educativo | +0.13 | Proteção leve, com ressalvas* |
Co-viewing | +0.16 | Proteção moderada, especialmente precoce |
Idade tardia de início de exposição | +0.17 | Benefício consistente |
Esses valores de “r” representam correlações modestas, mas significativas. Ou seja: não é uma relação determinista, mas é forte o bastante para orientar condutas clínicas e políticas públicas - que é o que defendemos.
E o que mais chama atenção? Que o efeito negativo da TV de fundo foi mais forte do que o da tela ativa. E que o co-viewing e o início tardio da exposição foram as estratégias mais eficazes em proteger esse “desenvolvimento linguístico”.
E sobre o conteúdo educativo? Aqui entra uma ressalva valiosa: o benefício só aparece quando o conteúdo é de fato voltado ao desenvolvimento, e assistido com interação verbal, ou seja, PRECISA dos pais interagindo com a criança enquanto o conteúdo ta sendo consumido…
Só “deixar rolando” um app dito “educativo” não basta. Muitos pais se apoiam em marcas que prometem ensinar cores, formas e números, mas o que precisamos deixar BEM CLARO é que a criança aprende linguagem com conversa, não com narração passiva.
A ilusão de que “Baby Einstein” vai fazer milagres é um perigo, e isso precisa entrar no nosso repertório de orientação com as famílias, combinado?!
👀 E na prática, o que eu faço com isso?
Você já sabe, mas não custa lembrar: pediatria é prática. Então aqui vão 5 caminhos para levar esse conhecimento direto pro consultório:
1. Pergunte sobre tela com jeitinho
Não é sobre interrogar, é sobre abrir conversa: “Como é o uso de telas lá em casa?” costuma render mais do que “quantas horas por dia ele assiste TV?”
2. Valorize o contexto mais que a quantidade
Se a tela é usada com interação, em conteúdo educativo, durante 30 minutos com os pais, o impacto é bem diferente de um tablet ligado por 3 horas enquanto a criança come, brinca e dorme.
3. Oriente com base em evidência
Aqui, nós ainda continuamos seguindo a recomendação da nossa sociedade (SBP) no consultório:
Evitar a exposição de crianças menores de 2 anos às telas, sem necessidade (nem passivamente!)
Entre 2 e 5 anos: limitar o tempo de telas ao máximo de 1 hora/dia, sempre com supervisão de pais/cuidadores/responsáveis
Entre 6 e 10 anos: limitar o tempo de telas ao máximo de 1-2 horas/dia, sempre com supervisão de pais/responsáveis
Adolescentes entre 11 e 18 anos: limitar o tempo de telas e jogos de videogames a 2-3 horas/dia (nunca “virar a noite” jogando). Já é sabido que há aumento dos riscos à saúde e problemas comportamentais com o uso de mais de 4-5 horas/dia.
Mas.. ela não é a única. A recomendação da AAP pode servir como guia, apesar de ser um pouco mais “permissiva”:

Idade | Recomendação |
---|---|
<18m | Evitar totalmente (exceto videochamadas) |
18-24m | Somente com co-viewing |
2-5a | Máximo de 1h/dia, com supervisão e conteúdo educativo |
>5a | Reforçar equilíbrio e co-visualização |
4. Associe atraso de fala à exposição de tela
É raro ter linguagem atrasada e tela equilibrada. Perguntar sobre tempo de exposição ajuda a montar o quebra-cabeça.
5. Use o co-viewing como ferramenta de prescrição
“Assista junto e converse sobre o que estão vendo” é orientação real, com base em evidência. Pode e deve estar na caderneta ;)
🩺 Em 1 minuto: o que você precisa lembrar
✅ Uso excessivo de tela (mesmo TV de fundo) está associado a piores habilidades de linguagem.
✅ Co-viewing (assistir com um adulto, INTERAGINDO) e conteúdo educativo ajudam, mas não compensam horas de tela passiva.
✅ A introdução precoce piora os desfechos.
✅ Recomendar que a criança “veja sozinha o tablet” enquanto os pais resolvem outras coisas tem impacto no desenvolvimento.
✅ A intervenção precoce (inclusive com fono se necessário) e ajuste no ambiente digital são fundamentais.
Uau.. Se você chegou até aqui, parabéns! Agora tem munição científica e prática pra enfrentar o tsunami de telas no consultório com embasamento e confiança, sem parecer só um “pediatra do contra que segue os modismos da internet” rs
Na próxima edição, vamos mergulhar em outro tema que parece “polêmico”, mas é pura ciência. E até lá, fica a provocação:
Será que a gente também anda usando tela demais? Fica a reflexão