#10: Resíduo gástrico: tradição ou evidência?

Avaliar RG em prematuros extremos pode atrapalhar mais do que ajudar.

EDIÇÃO #10

The Peds Journal

A newsletter da pediatria baseada em evidência - com leveza, profundidade e algumas risadas, por que não?!

O “culto da seringa” ta ficando ultrapassado...

Porque na UTI neonatal, tem resíduo gástrico que assusta mais que alarme de monitor.. mas será que a gente precisa mesmo testar isso todo dia em todos os bebês? É o que vamos discutir hoje!

🧠 Como você vai ficar mais inteligente hoje

Tema: Effect of Gastric Residual Evaluation on Enteral Intake in Extremely Preterm Infants

Fonte: JAMA Pediatrics, 2019 – [clique aqui para acessar o artigo completo]

  • Por que você deveria se importar?

  • Você acha que sabe, mas…

  • O que o estudo avaliou

  • O que os resultados mostram

  • Implicações práticas para os pediatras

  • Em 1 minuto: o que você precisa saber

Por que você deveria se importar?

Se você já pisou em uma UTI neonatal, reparou que o teste de resíduo gástrico é quase um “ritual diário” lá dentro… Todo neonatologista plantonista já ouviu da enfermagem “Dr/Dra.. 10ml de resíduo verde no leito 9.. vai administrar a próxima dieta?”

E de fato.. o resíduo gástrico, indicando gastroparesia, pode ser um sinal de intolerância alimentar e até risco de NEC.. mas pode ser apenas o estômago de um prematuro sendo o estômago de um prematuro.

Mas… será que isso muda o cuidado? Sim! Avaliar o resíduo gástrico diariamente pode atrasar a progressão das dietas, prolongar nutrição parenteral e aumentar o tempo de internação. Ou seja, pode atrapalhar mais do que ajudar… e é isso que veremos hoje!

Você acha que sabe, mas…

Entenda, pequeno(a) gafanhoto(a): nem sempre aquele resíduo verde, ou a tal da “seringa de 10ml” de resíduo é um sinal de alarme. 

Antes desse ensaio clínico, a literatura já mostrava que volumes de até 2–3 mL/kg podem ser normais em prematuros, simplesmente pelo atraso natural da motilidade que essas crianças tem.

O problema é que a prática do teste de resíduo foi se enraizando nas UTIs como se fosse um oráculo: se tem resíduo, pausa a dieta; se ta esverdeado, sinal de desastre iminente.. 😅

E isso virou rotina diária, passada de preceptor para residente, mais por tradição do que por evidência. Afinal, todo mundo já ouviu aquela máxima: “se tem resíduo, segura a dieta que vem enterocolite por aí”.

E aí entra o valor desse estudo: ele coloca em xeque justamente essa cultura de que todo resíduo é patológico. Porque, spoiler bem importante: não avaliar o resíduo não aumentou NEC, sepse, mortalidade ou pneumonia associada à ventilação.

Então.. será que precisa mesmo ficar testando?! Esse ensaio clínico randomizado foi desenhado justamente para testar esse dogma.

O que o estudo avaliou

Foram incluídos 143 recém-nascidos com peso < 1000 g e média de 27 semanas de idade gestacional, internados em UTIs neonatais nos Estados Unidos. 

Todos receberam somente leite humano (materno ou doado) e seguiram protocolos nutricionais padronizados para progressão da dieta.

Os bebês foram divididos em dois grupos:

  • Grupo Resíduo: avaliação pré-alimentar do conteúdo gástrico, como é feito tradicionalmente na maior parte das UTIs.

  • Grupo Sem Resíduo: alimentação sem avaliação rotineira de resíduo gástrico.

O desfecho primário foi a ingestão média diária de leite humano. Já os desfechos secundários incluíram:

  • tempo para atingir 150 mL/kg/dia,

  • ganho ponderal,

  • tempo até retirada da nutrição parenteral,

  • tempo de internação hospitalar,

  • ocorrência de NEC, sepse tardia, mortalidade, displasia broncopulmonar e pneumonia associada à ventilação.

Ou seja, o estudo não olhou só para “se o bebê comeu mais ou menos”, mas também para segurança clínica. 

A ideia era justamente testar se tirar esse ritual da rotina poderia colocar os prematuros em risco (ou se, na verdade, atrasar a dieta era o verdadeiro problema).

O que os resultados mostram

Os números falaram (bem) alto: os bebês que não tiveram avaliação rotineira de resíduo se saíram melhor em vários aspectos nutricionais..

Eles conseguiram avançar a dieta mais rápido (20,7 mL/kg/dia contra 17,9 mL/kg/dia no grupo que avaliava resíduo) e, ao longo das semanas 5 e 6, já recebiam volumes significativamente maiores de leite humano. 

Esse avanço mais consistente se traduziu em maior ganho ponderal e, o que todo pediatra gosta de ouvir, alta hospitalar cerca de 8 dias antes 😱

Curiosamente, houve menos episódios de distensão abdominal no grupo “sem resíduo”, mas um número um pouco maior de vômitos. A diferença, porém, não teve impacto clínico relevante, ou seja, nada que justificasse frear o avanço da dieta.

E o ponto mais importante: em termos de segurança, não houve diferença entre os grupos. Ou seja, não avaliar resíduo não aumentou o risco de NEC, sepse tardia, mortalidade, displasia broncopulmonar ou pneumonia associada à ventilação.

Em resumo: deixar a seringa de lado não trouxe riscos adicionais e ainda favoreceu desfechos nutricionais e de internação.

Em resumo: deixar a seringa de lado não trouxe riscos adicionais e ainda favoreceu desfechos nutricionais e de internação.

Implicações práticas para os pediatras

O recado desse estudo é claro: a avaliação rotineira de resíduo gástrico em prematuros extremos não deve mais ser feita. 

O procedimento, antes encarado como obrigatório, mostrou ser, na verdade, um “freio” para o avanço da dieta e não trouxe qualquer ganho em termos de segurança.

Isso significa que o papel do pediatra/neonatologista passa a ser duplo:

  1. Mudar a prática na beira do leito, orientando a equipe multiprofissional a abandonar a seringa como “termômetro de risco” e focar em sinais clínicos reais de intolerância.

  2. Ajudar a quebrar o ciclo cultural, lembrando que a rotina de checar resíduo todos os dias se baseava mais em tradição do que em ciência.

Ta.. mas quer dizer então que eu NUNCA posso indicar uma testagem de resíduo? Veja bem, não.. a testagem tem suas indicações. E quando indicar, então? 

  • Distensão abdominal significativa

  • Vômitos persistentes

  • Instabilidade clínica associada

  • Presença de sangue nas fezes

Na prática, menos interrupção da dieta significa mais leite, mais ganho de peso e menos tempo de hospitalização.. sem aumentar risco de NEC ou sepse. 

Para o pediatra, é mais um daqueles clássicos exemplos em que “menos é mais” rs

Em 1 minuto: o que você precisa lembrar ⏱ 

  • A avaliação rotineira de resíduo gástrico em prematuros extremos não melhora desfechos clínicos, pelo contrário: pode atrasar a progressão da dieta, aumentar o tempo de nutrição parenteral e prolongar a internação.

  • Não avaliar resíduo, se a criança estiver bem clinicamente, é seguro: não houve aumento de NEC, sepse, mortalidade, DBP ou pneumonia associada à ventilação.

  • O teste de resíduo deve ser reservado para situações específicas de disfunção gastrointestinal: distensão abdominal significativa, vômitos persistentes, instabilidade clínica ou sangue nas fezes.

  • Menos seringa de resíduo = mais leite no estômago, mais peso na balança e menos dias de UTI.

Se você chegou até aqui, parabéns: sua mente já ganhou mais peso (de conhecimento) que muito prematuro na semana 5 de vida 😅

E olha que, diferente da curva de crescimento, aqui não tem platô: cada edição da The Peds é mais um passo pra deixar seu raciocínio clínico mais potente que seringa de 10 mL em estômago de prematuro extremo kkkkk (desculpa gente, vocês QUASE passaram ilesos de piadas ruins nessa edição)

Nos vemos na próxima semana, pra seguirmos desmistificando mais daqueles dogmas pediátricos que parecem imortais..

Enquanto isso, compartilhe a The Peds Journal com colegas e residentes: conhecimento bom é que nem dieta bem conduzida, quando se espalha (e ninguém atrapalha rs), os resultados aparecem mais rápido.

Beijinhos científicos,
Gabi do PDC